sexta-feira, 14 de julho de 2017



Foto: Edward Hopper

Sobre viver...
O ser humano precisa ser afetado, somente assim pode-se fazer o humano. Minúsculas coisas geram verdadeiras hecatombes. O bater das asas das borboletas, os cascos de um cavalo, a erupção do vulcão, a queda de uma estrela, o nascimento de uma flor...O olhar  agarra e abisma, agarra ou abismo. É assim, é grande ou pequeno de acordo com cada bússola, com a singularidade de cada história. 
Fui alfabetizada em uma pequenina escola do campo. Não sei dizer o motivo, mas tive mais de uma professora, duas no mínimo, num período de um ano. Chamava-se Gracinha aquela pessoa de cabelos crespos, olhar triste e boca torta. Corria um boato que ela teria tido paralisia infantil.  Linda aos meus olhos, eu não me enquadrava nos padrões que regiam a boniteza ou a feiura. Gracinha era linda, linda da onde eu a via.  Meu encantamento por aquele mundo das palavras, onde as guardiãs eram aquelas mulheres, a transformavam em seres mágicos. Não me lembro de Gracinha ter me ensinado algo, mas a imagem dela é tão viva como se eu estivesse no ano de 1982 e um afeto bom me percorre ao relembrá-la. Minha outra professora chamava-se Neli. Uma senhora muitíssimo magra, cabelos curtos e negros e um óculos na ponta do nariz que eu adorava. Neli constrangia-me publicamente com seus elogios. Lá, naquela pequena idade eu já questionava a justiça daqueles elogios frente a meus colegas que tinham dificuldades. Eu própria achava que tinha dificuldades e não merecia elogios daquele porte. Neli me elogiava e eu queria muito ser invisível quando isso acontecia, mas eu queria mesmo era levar a Neli para casa e ficar olhando aquele rosto bondoso que exalava paciência e aconchego. Acho que foi ela que me ensinou a ler. Como eu gostaria de dar um abraço na Neli e dizer obrigada. Só sei que Neli é mãe de Jerry e eu pensava que ele gostava muito de ser filho de alguém que tá lá no quadro ligando as letras e fabricando PALAVRAS. Palavras, palavras... Sempre tive muita fome de palavras, de frases, de histórias, de narrativas. Vim de um lugar mudo, mas a escola me devolveu a língua. Lembrei que nesta escola a turma da Mônica foi desenhada pela professora de artes, uma menina muito jovem que mancava da perna. Eu a achava um ser divino por isso e por seus cabelos cacheados dentro de uma touca. Troquei de escola porque fomos morar na cidade, era tudo tão grande. Minha mãe me deixou na escola nova e uma senhora muito magra e muito alta, na minha lembrança ao menos, me deu sua mão magra e ossuda e disse: agora é comigo. O nome dela era Brasília, um mistério pra mim aquela mulher ter nome de carro. Na época era a associação que pude fazer, hoje eu acho que não poderia ter sido melhor. Brasília me entregou para minha nova professora, a Augusta. Augusta era linda, vivamente linda. Tinha sempre um sorriso no rosto e olhos que gargalhavam. Ali, no encontro com aquela mulher, eu entendi que eu procurava a felicidade, que eu gostava muito de gente que ri e sorri e se encanta. Na minha casa se encantar era proibido, sorrir era meio obsceno, era constrangedor. Aquela mulher cheia de vida e que cantava me encantou e me jogou na poesia. O encontro com Augusta me fez sentir menos estrangeira na minha pele, no meu encantamento pelo lúdico. Afinal o mundo tinha mesmo uma passagem secreta para um mundo de cor. Augusta me permitiu ver as cores da vida em músicas cantadas em roda. Ali eu não senti que era vergonhoso emocionar-se com aquilo que eu nem entendia, mas era a arte. Eu entendi o poder da arte em forma de música aos sete anos de idade. Naquela sala daquela escola que tinha nome de coronel eu quase entendi o sentido da arte na vida. Augusta foi um meteoro na minha pequena existência. Tempos depois, alguns dez anos talvez, eu encontrei a filha de augusta num curso técnico, coisa de adulto,  e vi a mesma criança reagindo. "Gente, esta é filha de Augusta, que coisa maravilhosa conviver com aquele sorriso."Bom, ela nunca soube disto. A Mirela nunca soube que eu era uma fã de sua mãe. Fui adulta e, por consequência, contida, e não revelei isso.
Este relato certamente é sobre pessoas que te tocam na vida e vão te levando por caminhos, que vão abrindo pequenas brechas pra gente poder respirar um pouco. Pessoas que deixam uma palavra, um olhar, um pedaço de luz. Será que a luz pode ter pedaços? Pessoas humanizam pessoas, pessoas recontam pessoas, pessoas devolvem as pessoas da gente. Grandes coisas disfarçadas de pequenas nos dão a mão todos os dias e nos fazem caminhar. Na sétima série eu encontrei a “Santa”, assim mesmo, ela se chamava Santa e dava aula de geografia. Santa me ensinou sobre localizações muito mais do que imagina. Santa ensinou sobre os tamanhos do mundo e das pessoas. Ela me olhou e me olhando me fez ser. Naquele tempo eu sentia tudo desmontado, perdido, carecia muito de bússola e mapas. Foi ela, minha professora de geografia da sétima série, que fez com que eu acreditasse que havia a vida que eu via. Sem saber ela me empurrou pra vida, me deu coordenadas e uma mapa do mundo. Santa foi a geografia mais grandiosa que eu poderia encontrar. Passados muitos anos nós nos falamos ao telefone, eu não pude dizer exatamente tudo isso. Quantas frases, palavras e textos ficam omitidos por ai. Eu fico imaginando um arquivo secreto e paralelo pra tudo que sobra, ou se oculta, nos encontros da vida. A santa teria um arquivo secreto imenso, ela deveria saber que salvou esta pessoa aqui, esta pessoa que ela deu a mão e a fé para que voasse. Entre meridianos e paralelos, planos, relevos e graus ela ensinou as facetas da palavra "continente".

E assim a vida se faz, em pequenos toques pelo caminho, em olhares que te lançam uma nova forma possível de existir. Há dias em que um pequeno diálogo te salva, uma pequena sensação que o ser que está a tua frente sabe da humanidade em ti. Dias destes uma atendente da eptc, penso que percebeu minha tristeza, disse ao me atender: que dia lindo, né? Eu imediatamente tentei me recompor, não sou de desperdiçar pessoas que notam os dias, e respondi que não havia notado ainda, que estava meio atucanada. Ela, numa cumplicidade acolhedora, respondeu que nada deveria impedir a constatação de um dia lindo. Eu sorri e me dirigi ao atendente que me aguardava pra ver minha multa. Ando pecando por excesso de velocidade, acho até coerente com meus dias, é tudo muito curto, preciso ser rápida. A multa poderia ser metafórica, mas não foi.  A vida é caótica mesmo quando parece não ser, a suspensão momentânea do caos está no encontro, nos afetos que vão tecendo os sentidos da existência, sem saber dos contornos que se criam. Viver é sempre sobre afetos possíveis e impossíveis, ambos gritam sobre quem somos ou sobre quem deixamos de ser.
Márcia Batista