domingo, 4 de abril de 2021

O céu é tão longe

 

           


O céu da janela - Mariana Novaes

                     Onde colocar tantas dores que atravessam e rasgam nossos corpos todos os dias? Até quando suportaremos esta lâmina da saudade, das perdas, das injustiças, do escárnio, da imoralidade que tem dilacerado a esperança? Não faço ideia. Nem sei se ela segue dançando na corda bamba, equilibrista,  ou já está estatelada no poço sem fundo que estamos chafurdados. É insuportável ao ser humano viver sem braços e bocas pra carregar o peso dos dias ou abraçar seu irmão ou beijar sua menina na rua.  Na inanição de alegrias procuramos desesperadamente algo, mínimo que seja, que nos devolva um pouco de luz. Um amorteceDOR, um encantaDOR,  um desfazedor de dias terrivelmente mortíferos. Um achatamento simbólico nos tira o ar, falta respiradores, sobra respira dores. Plantas que somos vamos murchando sem os sóis das amizades, dos amores, da liberdade da gargalhada com nossos afetos. Temos reinventado formas de estarmos nesta tempestade tão longa, mas não tem sido suficiente. Dói tudo. Dói como um atropelamento diário, dói como a fome e a sede, dói  o  machucado dos mais abastados e dói como tem sido escalpela a pele dos mais vulneráveis. Dói. Cada morte de um morre um pouco da Terra toda. Dói porque antes de morrer de fato, antes do coração parar, morremos pela desumanização, pelo aviltamento que pisoteia com coturnos imundos nossas vidas. Deus está morto e não sei mais se o tempo é um senhor tão bonito. O relógio nunca esteve tão contra nós.

Márcia Batista

segunda-feira, 25 de maio de 2020

A Volta do Fio 10


A Volta do Fio 10















A Volta do Fio 10
Sonia Dalpiaz
Fio preguiça. Dormi tanto, que nem sei como. Ou melhor, sei sim. Estava relaxada pelo longo passeio que fiz ontem à tarde. Tu vais passear? Surpresa da minha vizinha, quando eu comentei que ia sair, mesmo com o dia ventoso e cinza. Porque ela sabe que se tem alguém que respeita o confinamento, sou eu. Quando saio, é um pé lá e outro cá.
Era dia de troca de livros e filmes, que eu tinha combinado com uma das minhas amigas da festa do pijama. A outra não se conteve. Deu um jeito de fechar a agenda e veio também. Íamos procurar algum lugar calmo para sentarmos a 2 metros de distância para conversarmos um pouco. Como se não fizéssemos isso todos os dias. Já começa quando o Fio chega na casa delas de manhã e pronto. Lá vem os plins, durante o dia com coisas que alguma pensa, coisas que alguma ri, coisas que alguma chora. É um espaço democrático. Às vezes, passo pelo celular e só largo ali qualquer coisa, registrando um pensamento que me passa pela cabeça. Isso acontece desde que a gente se conhece. Acho que é um espaço para compartilhar, mas às vezes até da gente se encontrar consigo mesma. Loucapracabarsemana, colocava eu, lá pela quarta-feira, quando cansada, no tempo de trabalho normal.
Saímos as três. De máscara. Andando, sem pressa, pelo bairro vazio. Fui de máscara nova, quase feliz. Passamos por pontos que elas queriam conhecer, que eu havia comentado nos Fios. Tipo passeio turístico. Vimos as casas antigas do bairro, as velhas e as destruídas, que deram lugar a prédios quadrados e envidraçados. Entramos no quilombo do Areal, que fica pertinho. Passamos no mercadinho do relógio parado. Mostrei o bar do Aldo, que ainda nem tive tempo de contar a história por aqui. Até perto da porcaria do Nacional. Esse, nem chamei a atenção, acho que nem viram. Bem feito.
Uma delas, aquela que tem o blog mais lindo que eu já conheci, tem mania de fotografar. Uma mania linda, porque ela tem talento. Não é como japonês, que tira foto de tudo, mas, como eles, tira foto de tudo. E nos fotografa, sem a gente perceber, e depois fica mandando as fotos. Às vezes, pede para uma de nós parar e faz foto avisada. Eu, que desde criança sempre fugi de fotos, me presto e me empresto. Foi com ela que descobri que é bom esse negócio. Minha outra amiga diz o mesmo. E também se empresta. E, juntas, nos deliciamos, depois, com o resultado.
Fica na frente dessa parede verde, ordenou à minha amiga ontem. Ela ficou ali para o clic. Repetiu para mim a mesma ordem. Fui. À noite, quando chegaram as fotos, foi uma alegria. Cada uma de nós, de máscara, na frente daquela parede velha e rugosa, que alguém pintou de um verde tão brilhante, que nos iluminou. E isso, na foto, se revela em nossos olhos. Tu viu que nossos olhos estão rindo, falei quando olhávamos o resultado de nossa tarde. E estão. Porque estávamos felizes de estarmos juntas, andando por aquelas ruas vazias, olhando portas, janelas, flores e detalhes que se protagonizaram através do olho sensível de nossa fotógrafa.

terça-feira, 28 de abril de 2020

O fio e o barco, ou brechas na angústia.

Foto: Márcia Batista


Foto: Márcia Batista

Em dias que o verbo sonhar foi sequestrado da gente, o fio e o barco alimentam um pouco a fome de alegrias. Barco e fio no alento de viajar palavras, em um embarco, em outro me dependuro e organizo minhas angústias, enrolo e desenrolo. É melhor angústia organizada do que toda espalhada por dentro de mim, não gosto.
O barco viaja pra lá e pra cá nos trazendo histórias, palavras, informações, navega em mar alto e revolto. Não usa âncora, eu gosto desta peculiaridade do barco. É solto nos oceanos, quanto mais vento melhor, vive distribuindo poesia nas Marinas que escolhe parar. É um barco todo colorido e cantante, mas se engana quem pensa que não vira  submarino. Vai até as profundezas, faz partos onde nem se sabia que havia o que sair. É um barco cirúrgico, preciso no afeto, no tom da voz, no abraço, em suas embarcações. Soube muito cedo que iria ser navegante, esvoaçante, barco, parto, marco, arco. Martelo, singelo, elo.  O fio parece espevitado, mas é sua dança, seu ser bailarino, brinca com as palavras porque é muito íntimo delas, porque as come, se alimenta delas. Faz e desata nós, faz e desata pra nós. O fio ama(rra )daqui, ama dali, nos laça sem esforço. As pernas do fio são compridas e velozes. Existe de todas as cores, sabores, dores, amores. O barco e fio sabem fazer dos dias uma vigem a tecer e reinventar vidas. 

Márcia Batista

terça-feira, 21 de abril de 2020

Estômago e afetos para existir





Foto: Márcia Batista RJ


Levantamos todas as manhãs sem saber o que aconteceu no mundo. Quantas pessoas se foram, quantas estão lutando ferozmente pela vida, num respirador ou no transporte público, nos lugares onde nem água há para que se possa lavar as mãos, quem dirá a alma, suspender a alma, seja com alguma beleza ou saciar o corpo com alimento. Nos hospitais as equipes exauridas, amedrontadas, mas sempre presente. Marielle presente! Jair disse, Jair desdisse, Jair desdisse o que disse e voltou a dizer. Jair é a Constituição, uma das suas últimas sandices, que eu saiba, claro. É sempre difícil acompanhar a perversidade do homem anticivilizatório. Este Brasil que eu não conhecia me arranca pedaços do estômago. Um país cego pelo ódio, bela boçalidade, pelo orgulho da ignorância, pela identificação com a pobreza de pensamento e empatia. Um país racista e hipócrita que se deixou levar pela eleição de um único inimigo, o PT. Parece-me que a ignorância precede o PT e a falta de conhecimento de como chegamos até aqui, digo, há mais de quinhentos anos estamos caminhando pra este hoje, é outro ingrediente desta panela de (de)pressão. A Terra virou plana, o comunismo come criancinhas, há o kit gay, há professores sendo ameaçados e espancados. É tanta falta, estamos lotados de falta. Nega-se uma pandemia, mas os ricos a negam de dentro dos seus carros e munidos de suas máscaras. A doméstica negra morre de COVID servindo aquela que voltou de uma viagem internacional contaminada e , não deu nem a chance dela, a sua serviçal, saber que poderia estar em risco. Em algumas cabeças funciona assim, há quem valha menos, são privados de nomes, identidades, sonhos, seus filhos não valem nada, não  há quem dê falta de seus corpos no mundo.   Eu detesto esta gente, eu detesto esta gente toda que parece ter brotado no Brasil. Eu sei, não brotou, são troncos velhos e enraizados. Gente cafona que se mede por seus carros e suas roupas de marca julgando-se imortais. Detesto. Detesto os que bradam anticorrupções e dão um jeito de burlar o imposto de renda, conseguir ingressos gratuitos depois de falar absurdos sobre a lei Rouanet, é claro que nem imaginam como funciona e o quanto é difícil ser  artista e/ou trabalhar com arte neste país. Os mesmos que desprezam a arte devem estar em seus sofás assistindo shows, novelas, ouvindo música ou quiçá, lendo um livro. Este Brasil detestável que fez do verde-amarelo algo repugnante, se estivesse no divã, acho que seria caso de narcisismo, ressentimento, prepotência e psicopatia, só pra começar.


quarta-feira, 8 de abril de 2020

A menina do fio








Conheci a menina do fio numa sala de aula, o fio já nos uniu, embora ainda não soubéssemos sobre ele. Ela, com sua voz forte e sem pudores, com seu sorriso atemporal. Eu, que me autointitulo descobridora de ouriços, captei algo olhando as veias do seu pé e imaginando ela numa sala finamente decorada com um lustre centenário. Ri do meu próprio pensamento porque contrastava com a irreverência transgressora dela. Tricotava seu doutorado incansavelmente enquanto um cachecol gigante ia fazendo a volta no quarteirão. A menina do fio adora seus livros, seus pacientes, seu filho, o leixo, o sol, a chuva, a mesa de sinuca, as linhas e as agulhas de tricô. Adora sua casa a ponto de acordar as 4h da matina pra ficar mais tempo com suas paredes antes de sair pro seu trabalho fonopsicoaudiólogo.  É cheia de brisas e tempestades, não tem travas na língua e tem a altivez dos justos. Agora tem feito poesia com seu isolamento, tem atendido pacientes por vias inéditas. Imagino-a brigando com seu computador e logo fazendo as pazes, porque a vida é muito curta pra ficar de mal, ela sabe, até com a amiga que ousou fazer panquecas pra ela, voltou a falar. Ela também sabe que a vida é curta demais pra gastar fonemas, palavras ou frases com quem não vale a pena, aqueles de alma pequena. Ela é muito econômica neste sentido, tem profundo respeito e sabedoria por seu tempo. Hoje a menina do fio faz sessenta anos e eu imagino ela maquiada e de pantufa correndo pelos jardins, com a cabeleira solta e com seu abridor de horizontes em punho, pronta pra pegar seu tear e reinventar a vida.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

O filho de mil homens





            Crisóstomo: 

“todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil país e as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa em pessoa, que nunca estaremos sós(...)”

Valter Hugo Mãe - O filho de mil homens

sábado, 18 de janeiro de 2020

Branca

11/09/2005 - 21/12/2019








































































Onde encontro de novo a vida que te habitava, aquele sopro impalpável, aquilo que some na matéria rígida e calada. Presença falta, memória que insiste em abraçar o espectro de ti. Memória Branca, a saudade tem a cor dos teus olhos castanhos e cheios de mundo. Viveria todos os dias desses quatorze anos contigo, todos os dias de novo a admirar o ar entrar e sair de ti. Senti tantas vezes teu coração em minhas mãos e tu quis em tua última respiração que eu sentisse em meu próprio peito a tua última batida . Só soube ser lágrimas porque nunca te concebi morte. Sabia, pulsava em mim ser gratidão por nosso encontro, mas sempre me faltava mais um pouco de ti. Assim é o amor? Não se contenta com o tempo mortal, com as horas dos órgãos. O amor não cabe numa única vida. Eu acaricio tuas orelhas, eu relembro cada deformidade de tuas patas gastas pela felicidade do vivido. Encosto meu rosto no teu,sinto teus pelos, ouço teus latidos. Onde minhas mãos encontram tuas formas de novo, as posso sentir e escorrer como vento agora que tu não és mais tu. Do corpo à memória, da memória a presença-ausência, o estar não estando ao alcance do toque,mas a alma cheia de Ti. Percurso tortuoso o de estar não estando e não estando estar no infinito de cada detalhe. Percorro anos até buscar em algum lugar, mínimo lugar , que possa ter falhado. Percorro praias, Campos, rios, cidades, amigos, abraços e parques . Tu está lá , mesmo antes de ter estado tu esteve, tu permanece. Tua vida é tão grande que preciso descobrir outro lugar que não se chama morte. Chamo-te vida Branca, meu pedaço de vida Branca, uma vida que baterá em meu peito até estarmos juntas de novo. Eu preciso acreditar que vamos nos abraçar de novo . Não em vão tu fez meu coração parar por um segundo junto ao teu na hora da tua partida, para que em mim brote a esperança no infinito.