terça-feira, 16 de abril de 2019


Lídia
Uma alma em(canto)



Eu assim... Vejo-te de tão perto, longe.
Sei que parte cada dia um pouco, parte tão lindamente, sorrindo pra vida. Há anos te olho, de tão longe, perto, de tão perto, longe.  Tuas janelas verdes, vivas, abertas em constante ventania. Teus olhos nunca choram, agradecem a vida... Está tudo certo. Eu, de tão perto , de tantos erros não entendo teu certo, mas tu sorri. Sorri com o som da vida, tua barriga ri, gargalha a cada mínima faísca que te ascende, acende, ascende. Vejo teu corpo fragilizar e tua alma voar, tua transformação pássaro. A gente ri como duas velhas amigas de escola, tu com teus quase um século me chama de jovem, eu com quase meio século queria ter a sabedoria da tua poesia. Saímos e tu para em cada flor, eu reclamo, preocupa-me o entorno, mas sorrio por dentro com teus passos lentos e tua alma veloz. Sabe olhar o que importa, nunca perde uma piada, uma foto, um assunto ou gíria nova. Cuido de ti querendo ter o dom de te eternizar, pois tu já te eternizaste em mim. A gente combina de vir avisar a outra se existe outro lado, outra vida, outra forma de existir. Tu tens medo de fantasma, eu prometo que não virei num lençol branco, mas nos teus sonhos. Tu me diz que não vai com a morte, que terão que te levar a força, a mando dos filhos. Eu rio triste, a gente sabe que a morte não pede licença, mas digo que tu és eterna. A gente sabe e não sabe, no fundo todos cremos um pouco no eterno. Contigo eu aprendi um pouco mais de MPB, da Clara Nunes, da Ivone Lara. Comigo tu começou a adorar Felipe Catto, Jean Melgar, Ilse Lamper, rodas de samba. Compartilhamos tantas músicas olhando o gato amanhecer na janela do lado,  as caturritas migrarem. Já me encantei tantas vezes ao te ouvir cantar, já cantou tantas musicas que te pedi, mesmo não querendo, sempre canta. Te coloquei mil apelidos, tu ri de todos , tu nunca perde oportunidade do riso, tu nunca perde.  Já te vi doente e quis estar longe porque conheço demais teus sinais, a mudança dos teus olhos, mas penso que a única coisa que posso te dar é a presença. Eu fico, mas eu que não sei rezar me pego rezando por ti. Descobri que o ser humano é sempre criança, só depende de ter um lugar pra brincar. Não vemos nossa pele enrugar, nossas pernas falharem, nossa coluna curvar, nossas mãos perdendo a força e nossa Memória sucumbir.  A finitude é irrealizável, assim que tem que ser.
Vejo o tempo te surpreender diante do espelho, não crê que a vida foi tao rápida, pois a menina em ti ainda dança, ainda reencontra teus irmãos num infância cheia de vida e teu pai com a maquina fotográfica em passeios familiares. Pergunto dos teus sonhos, dos teus medos, dos teus gostos. Já te vi dançando na sala e eu gargalhava com tua beleza de ser criança de um século. Penso que nunca crescemos e buscamos a leveza da dança despretensiosa, do erro certo, da felicidade simples. Nos já demos comida aos pássaros de manha cedo, fomos advertidas pelo condomínio, não se pode alimentar os pássaros para não “sujar”o parapeito vizinho. Eu detestei a vizinha por isso, tu só disse que ela era uma infeliz e lamentou os pássaros não chegarem mais na janela. Eu sigo detestando a vizinha, talvez um dia consiga apreender tua sabedoria, talvez...
 Tu oras no teu silêncio, te ancora na tua fé. Eu creio em ti, senhora da vida, o verdadeiro milagre. Repete sempre que não se arrepende de nada sem ter noção da grandeza que é isso. Viveria tua vida tal qual foi vivida, és uma nietzschiana sem saber que o és. Tua sabedoria de não se saber sábia. 
Eu assim vejo a vida acontecendo em ti todos os dias. É tão longe te imaginar longe, então pego cada pedaço de ti e vou costurando em mim para que nunca partas, para que nunca me deixe sem ti. Cada passo teu me faz rever a vida, me faz pegar teus pés a tentar um novo caminho, me faz te querer reagindo contra o tempo. Eu sei, o tempo não negocia, mas eu humanamente te quero aqui, um pouco mais no meu tempo, sendo tu, me ensinando a ser Lídia, a ser esta bailarina da vida que apenas sorri porque sabe simplesmente a complexidade do existir. 

Amor, Lídia...