segunda-feira, 30 de setembro de 2013

                                                        A arte de perder

A arte de perder não é nenhum mistério; 
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. 
Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente. 
A arte de perder não é nenhum mistério. 
Depois perca mais rápido, com mais critério: 
Lugares, nomes, a escala subseqüente Da viagem não feita. 
Nada disso é sério. 
Perdi o relógio de mamãe. 
Ah! E nem quero Lembrar a perda de três casas excelentes. 
A arte de perder não é nenhum mistério. 
Perdi duas cidades lindas. 
E um império Que era meu, dois rios, e mais um continente. 
Tenho saudade deles. 
Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. 
Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério. 

Elisabeth Bishop


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Alegria - Espinosa

Henri Lartigue


Para Espinosa, Deus não criou o mundo, ele é o mundo. Em outras palavras, tudo o que existe no mundo é Deus, que também pode ser pensado como a natureza, ou a substância infinita.Ao contrário da tradição filosófica, Espinosa não divide o mundo em dois. Para ele, tudo é um. Tanto os corpos como as almas, ou o pensamento, derivam de uma mesma substância, que se manifesta nos corpos de uma maneira e, nos espíritos, de outra. Mas nenhum é superior ao outro. Os dois manifestam a mesma coisa: a natureza, que ele chama de Deus.Da mesma forma, para ele, não existe bem e mal, mas bom e mau encontro. Para qualquer forma existente no mundo, há dois tipos básicos de encontro: um bom e um mau encontro de corpo, ou de alma.É da natureza do corpo, incluindo o corpo humano, afetar e ser afetado por outros corpos. Se o corpo que nos afeta se compõe com o nosso, a sua capacidade de agir se adiciona à nossa, e provoca um aumento de nossa potência. Isto é alegria.Um mau encontro é aquele em que um corpo que se relaciona com o nosso não combina com ele e tende a decompor, ou destruir, a relação do nosso corpo consigo mesmo, e com os outros, o que nos leva à diminuição e, conseqüentemente, à tristeza. O mesmo acontece com a alma.O afeto é, então, a potência de agir de um corpo. Quando a potência de agir aumenta, sinto alegria; e, quando diminui, sinto tristeza. Para ele, a única afeição é a alegria. Todos os outros afetos são derivações dela. A tristeza é somente ausência de alegria. O amor é a alegria acompanhada de uma causa exterior. Assim como o ódio é a ausência de alegria acompanhada de uma causa exterior.Por isso, enquanto nossos afetos estiverem à mercê dos encontros, ou de causas exteriores a nós, seremos marcados pela impotência, porque isso nos impede de agir. O que Espinosa chama de afetos ativos ou ações, supõe que estejamos de posse de nossa capacidade de agir. É aí que entra a alma ou o espírito.Se tanto a alma quanto o corpo manifestam a natureza, que é Deus, então uma idéia adequada é capaz de ordenar uma paixão inadequada. Uma paixão deixa de ser uma paixão e se torna uma ação tão logo tenhamos dela uma idéia clara e distinta. Portanto, a idéia não deve afastar as paixões – ao contrário, deve permitir que se manifestem como ação. O pensamento serve para permitir a alegria.A alegria, segundo Espinosa, não precisa de uma causa exterior, muito menos de uma causa. O motivo da alegria, quando existe, é apenas um impulsionador, que nos leva a uma experiência muito maior: a potência de viver. Toda alegria é alegria de viver.

Viviane Mosé

Ar raro efeito



Momento de abalos, estalos, espelhos estilhaçando diretamente carótidas que já não carregavam mais oxigênio no sangue, como um desfibrilador a buscar a vida. 
O oxigênio é a arte que mora dentro da gente, a parte impensável até que se fique sem ele por alguns segundos. 
Tão certos de sermos sólidos e tão ossos, somos líquidos e ares, e como nos falta ar... Armas, árvores, artesanias, arritmias.
 Tempo de secura de embalos, pois não há sonhos que  residam só nos dias. 
É preciso deitar e dormir com eles, e poder reconhecê-los ao acordar, mas só desperta aquele que dormiu, que se rendeu, carne e mente, ao instante de não existir.

Márcia Batista 

domingo, 1 de setembro de 2013

Monólogo das Mãos



Monólogo das Mãos

Para que servem as mãos?



As mãos servem para pedir, prometer, chamar, conceder, ameaçar, suplicar, exigir, acariciar, recusar, interrogar, admirar, confessar, calcular, comandar, injuriar, incitar, teimar, encorajar, acusar, condenar, absolver, perdoar, desprezar, desafiar, aplaudir, reger, benzer, humilhar, reconciliar, exaltar, construir, trabalhar, escrever......



As mãos de Maria Antonieta, ao receber o beijo de Mirabeau, salvou o trono da França e apagou a auréola do famoso revolucionário;

múcio Cévola queimou a mão que, por engano não matou Porcena;

foi com as mãos que Jesus amparou Madalena;
com as mãos David agitou a funda que matou Golias;
as mãos dos Césares romanos decidiam a sorte dos gladiadores vencidos na arena;
Pilatos lavou as mãos para limpar a consciência;
os anti-semitas marcavam a porta dos judeus com as mãos vermelhas como signo de morte! 



Foi com as mãos que Judas pôs ao pescoço o laço que os outros Judas não encontram.



A mão serve para o herói empunhar a espada e o carrasco, a corda; 

o operário construir e o burguês destruir;

o bom amparar e o justo punir; 
o amante acariciar e o ladrão roubar; 
o honesto trabalhar e o viciado jogar. 



Com as mãos atira-se um beijo ou uma pedra, uma flor ou uma granada, uma esmola ou uma bomba! 



Com as mãos o agricultor semeia e o anarquista incendeia! 



As mãos fazem os salva-vidas e os canhões;

os remédios e os venenos; 

os bálsamos e os instrumentos de tortura, a arma que fere e o bisturi que salva. 


Com as mãos tapamos os olhos para não ver, e com elas protegemos a vista para ver melhor.



Os olhos dos cegos são as mãos. 



As mãos na agulheta do submarino levam o homem para o fundo como os peixes; 

no volante da aeronave atiram-nos para as alturas como os pássaros.



O autor do "Homo Rebus" lembra que a mão foi o primeiro prato para o alimento e o primeiro copo para a bebida; 

a primeira almofada para repousar a cabeça, a primeira arma e a primeira linguagem. 



Esfregando dois ramos, conseguiram-se as chamas.



A mão aberta, acariciando, mostra a bondade;

fechada e levantada mostra a força e o poder;

empunha a espada a pena e a cruz! 


Modela os mármores e os bronzes;

da cor às telas e concretiza os sonhos do pensamento e da fantasia nas formas eternas da beleza.



Humilde e poderosa no trabalho, cria a riqueza; 

doce e piedosa nos afetos medica as chagas, conforta os aflitos e protege os fracos.



O aperto de duas mãos pode ser a mais sincera confissão de amor, o melhor pacto de amizade ou um juramento de felicidade. 



O noivo para casar-se pede a mão de sua amada; 

Jesus abençoava com as mãos; 

as mães protegem os filhos cobrindo-lhes com as mãos as cabeças inocentes. 


Nas despedidas, a gente parte, mas a mão fica, ainda por muito tempo agitando o lenço no ar. 



Com as mãos limpamos as nossas lágrimas e as lágrimas alheias.



E nos dois extremos da vida, quando abrimos os olhos para o mundo e quando os fechamos para sempre ainda as mãos prevalecem.



Quando nascemos, para nos levar a carícia do primeiro beijo, são as mãos maternas que nos seguram o corpo pequenino.



E no fim da vida, quando os olhos fecham e o coração pára, o corpo gela e os sentidos desaparecem, são as mãos, ainda brancas de cera que continuam na morte as funções da vida.



E as mãos dos amigos nos conduzem... 

E as mãos dos coveiros nos enterram!



BIBI FERREIRA IN CONCERT III