sexta-feira, 24 de junho de 2016

Restos e rastros


Restos e rastros


De que somos feitos? De tempos. Antônio Cândido disse: o tempo é o tecido da nossa vida. Nietzsche - reverência e gratidão a sua passagem pelo mundo - falou sobre o eterno retorno. Aceitaria tua vida do jeito exato que aconteceu? Bem e mal, angustia e prazer, numa alternância que nunca finda? Forças conflitantes que se repetem e se repetem. A cada mínimo instante da existência viver em questionamento sobre o querer, sobre o ser. "quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?".  Quero? Quero ser o mesmo de ontem? Ou o tempo, invisível e concreto, já me transformou em outro que já não sabe saber sobre o outro que era ontem? O tempo, sem dúvida, sabe ser invisível e palpável, duas formas de existência contraditórias. Mas não se pode negar que ele é, o tempo, o tecido das nossas vidas. Quando tento algum entendimento sobre a loucura de existir, este senhor é sempre absoluto. É dele que somos feitos. Ele nos levará até a morte, delicadamente até o confronto final. Pra que tudo isso? Melhor fazemos de conta que ela não existe para suportar a enlouquecedora ideia de não mais existirmos.

Uma rosa morre no frasco que outrora conteve suco. Morre a rosa no seu tempo de rosa sem raiz . SobreVIVER.  Vive o frasco que virou vaso. O suco foi-se em alguma memória de quem lembrou de mim pelo gosto por este frasco. A rosa foi um pedaço de tempo recente de um ato de delicadeza. Prefiro sempre as flores que vem com raízes, minha cisma de brincar de guardar o tempo. Escuto a trilha de “into the wild”. Um pedaço de tempo que guardo em mim. Alguém que passou e nem faz ideia do que deixou. Gosto de guardar rastros de amores que se dissipam antes de serem amores . Deixam músicas, ideias, sorrisos, questões, trilhas sonoras, filmes incríveis... e se vão. Assim é o tempo. Uma multidões de agoras e urgências. De Medusas que se transformam em espelhos possíveis. Que bom seria se conseguíssemos, como os pássaros, viver o voo perspectivista. De longe e do alto enxergamos melhor e temos noção do nosso tamanho e de nosso lugar no universo. Engrenagens. “In vino a veritas”, já disse outro tempo pra mim. A verdade no vinho. E vivemos a verdade daquele instante, não menos verdade porque durou um instante. Que belas verdades tem a duração de uma noite, de uma música, de algumas entregas em mesa de bar. Que lindo pode ser um momento, e que sábio saber deixar viver o tempo somente de uma respiração, de uma confissão, de ser mais leve por um breve tempo. De novo Ele, absoluto em sua existência.Amores nos destituem da ideia da morte. Onde há amor a eternidade se estabelece. Então temos asas, forças e eternidade. A eternidade também pode durar uma noite e cá estamos instaurados na mortalidade novamente. Como é difícil viver neste enlouquecedor vivo-morto-vivo-morto-morto-morto-vivo-vivo-morto... Era só pra ser uma brincadeira da infância, mas descobri que é uma metáfora da vida. Faz frio aqui, no sul a norte de mim. Olho o aqueceDOR  e penso como ele é indispensável hoje. Lacan? Palavras não podem ser apenas palavras? Acho que nunca mais serão. Pra mim elas tem vida própria. Riem, dançam e debocham de minhas escolhas.Eu amo minhas três cachorras. O que tem a ver com isso? Tudo. Nelas o tempo vive intensamente. Viverão tão pouco comparado a quantidade de amor que sinto. Tudo é tão intenso e cheio de cor. Fico pensando como é a experiência de só viver o amor, desde que despertam até caírem lindamente num sono cheio de paz e sem mágoas. Fico querendo viver na cabeça delas um mínimo de tempo, pra viver este jeito de ser.  Certamente aqui cabe a sonhada experiência de eternidade. É bom ser eterno neste tempo que sei que findará. Meu amor nos lança na posteridade.

Então a vida é feita de quê? De restos, rastros, pequenas e grandes memórias que vamos construindo cotidianamente. Cenas, cheiros, livros, frases , palavras, imagens... fotografias inimagináveis que somente a retina guardou. De tempos. Tempos que necessitam ser escolhidos a todo instante. De horas que se dissolvem na alegria ou se alargam na tristeza. Ainda assim horas que precisam ser acolhidas como parte de nossa carne, de nosso ser. Restos e rastros do tempo que somos, do que somos no tempo.

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