sexta-feira, 11 de outubro de 2019

O dia em que Selma sonhou com um ocapi





“Quando fixamos o olhar por um bom tempo em alguma coisa bem iluminada e depois fechamos os olhos, essa imagem persiste, estática, em nossa mente. O que na realidade era claro fica escuro e o que na realidade era escuro fica claro. Quando, por exemplo, observamos um homem descer a rua e se virar, de tempos em tempos, para acenar uma última vez, uma última vez mesmo, uma derradeira última vez e depois fechamos os olhos, enxergamos na mente a imagem congelada da derradeira ultima vez. O sorriso fica congelado e os cabelos escuros ficam claros, e os olhos claros, muito escuros.
Quando aquilo que ficamos olhando durante muito tempo era importante, algo, segundo Selma, capaz de virar de ponta-cabeça todos os aspectos da vida num único movimento,  essa imagem sempre retornará à nossa mente. Ela retorna de repente até décadas mais tarde, não importando o que tínhamos acabado de mirar antes de fecharmos os olhos.  A imagem de um homem que acena uma derradeira última vez aparece de repente quando, por exemplo, um bichinho nos cai nos nossos olhos enquanto estamos limpando a calha de chuva. Aparece quando queremos descansar os olhos por um instante porque ficamos estudando por muito tempo a incompreensível planilha dos gastos extras do condomínio. Quando estamos sentados na cama de um filho, à noite, contanto uma história de ninar e nos esquecemos do nome da princesa ou do seu final feliz porque já estamos muito cansados. Quando fechamos os olhos ao beijar alguém. Quando estamos deitados no chão de terra, numa mesa de exames clínicos, numa cama alheia ou mesmo na nossa cama. Quando fechamos os olhos porque estamos carregando algo muito pesado. Quando passamos o dia inteiro caminhando e paramos apenas para amarrar os cadarços e só então, com a cabeça para baixo, percebemos que não descansamos um minuto sequer naquele dia. Aparece quando alguém diz “feche os olhos” para nos preparar uma surpresa. Quando nos encostamos na parede de um provador porque nenhuma das calças escolhidas serviu. Quando fechamos os olhos um pouco antes de finalmente revelarmos algo importante, antes de dizermos, por exemplo, “eu te amo” ou “mas eu não”. Quando, à noite, fritamos na manteiga rodelas de batatas cozidas. Quando fechamos os olhos porque diante da porta está alguém que não queremos de modo nenhum convidar para entrar. Quando fechamos os olhos porque uma preocupação muito grande foi tirada de nossas costas. Quando reencontramos alguém ou alguma coisa, uma carta, um sentimento de segurança, um brinco, um cachorro perdido, uma voz ou uma criança que estava escondida. Essa imagem sempre retorna de repente, retorna como se fosse um descanso de tela da vida – muitas vezes, quando menos esperamos”.
Mariana Leky

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