domingo, 1 de dezembro de 2019

Viver sem morrer é o mesmo que morrer sem ter vivido



Lída Maria Michel da Silva - amiga (improvável) querida - Verão de 1954 ( talvez)-  03/12/2019



Olho como se fosse a 
última vez e sinto que não cabe, a vida derrama dos meus olhos, não a posso segurar. A memória traz um riso antigo, de um tempo esperançoso, lá onde ainda a finitude não se apresentou. Fragmentada, espalhada com tantos que já se foram, pela morte ou pela vida. Por algum amor que me carrega dentro de si, por outro que carrego dentro de mim. Não sei passar, carrego os tempos em mim. Uma nota de violão , os olhos pequenos de uma vó terna, sofrida e cheia de vida, uma voz que um dia foi alento, uma música ao telefone, uma notícia que nos fez parar de respirar; depois dela jamais seria igual. Algo acabava, algo iniciava, assim é.                 Desabamentos e construções. Esperança e medo, irmãos inseparáveis, oxigênio um do outro. Esperança que algo de bom resgate do breu, de algum    tormento. Medo que o corpo não seja tão elástico e a esperança chegue tarde ao tempo do sofrimento. Os dados nunca cessam de serem lançados, e nós a rodar junto com eles. Não se vive sem morrer muitas vezes, plantar flores de novo, amar de novo, perder-se de novo. Sonho com a casa de infância, não que a felicidade estivesse por lá, mas acho que para resgatar a pequena com encantamentos que não sabia morrer. O verde dos olhos cantarolantes de uma amizade improvável. Improvável não combina com estar vivo, os milagres dos descaminhos, é preciso estar descalço e não perder a sensação de como é a grama encontrando a sola do pé. É preciso deixar encontrar-se por aquele que te tiram os sapatos e as respostas, que giram a bússola, que tonteiam as razões e te fazem perceber que só a insanidade de amar é coerente. É essa insanidade, que faz, sabendo que tudo se acaba, ainda termos filhos, amigos, amores, flores plantadas, planos para o final de semana, ou é justamente por isso que os temos, pra que a finitude não nos engula, não nos arraste vivendo fins diariamente. Uma palavra que agarra um fio solto dentro da gente e pronto, encantamento. Uma veia da testa que te arrebata numa beleza de um traço que te faz amar. Um jeito de rir que mora na tua cabeça e te joga no amor. Um jogo de cartas num verão de algum ano, uma viagem cheia de lugarejos, planos de fugas, desencontros, o amor de novo. O jogo de vida e morte, uma corda esticada entre abismos. Um filme na memória, de novo Na natureza selvagem, a vida só faz sentido se compartilhada. Compartilhar é isso, viver e morrer todos os dias, dói. Só os vivos sentem dor porque há coisas que não são possíveis esquecer e outras, lembrar. Um sitio distante onde a felicidade e a tristeza se irmanaram, um cão perdido, um churrasco, algumas paixões, choros, um cão que retorna na hora da comida, vinho e conversas, decepções e saudades. Um rio a olhar tudo isso, nós, quatro mortais, tentando aliviar dores atávicas. Quatro seres desejantes de felicidade, mirando a beleza, mas não fazendo parte dela, não naquele momento, era muito cedo para que ela, para que a felicidade marginal, aparecesse. Em mim o caos doía, era impossível explicar o tamanho da dor enquanto o sol se punha. O por do sol, o lindo por do sol, nos remete a morte de mais um dia. Ali do alto eu sentia a dor de quem perdera algo inexplicável, algo que palavras jamais seriam capazes de alcançar. Lembro de um pensamento, uma vontade, de que finalmente alguém me resgatasse daquela prisão de ser alguém sem lugar no mundo, mas não aconteceu. Aprendi ali que resgates não existem. Após anos ninguém, alem de mim, elaborou um plano de resgate. O amor só pode ter uma face, eu creio nisso, é preciso uma hecatombe para aceitar que a vida não é controlável. De repente uma chegada numa sala de aula, uma fras e pronunciada muda completamente o rumo do barco e a vida planejada escapa. Nunca mais se alcança a ilusão do controle, nunca mais.
       Então é preciso estar muito vivo pra olhar a morte, é preciso abraça-la muitas vezes até que efetivamente ela parta com teu corpo depois de incontáveis vezes ela já ter levado tua alma. Viver e morrer é um trajeto diário e só escapa quem já não sabe a diferença entre uma coisa e outra.  











Benditas


"Benditas coisas que eu não sei
Os lugares onde não fui
Os gostos que não provei
Meus verdes ainda não maduros
Os espaços que ainda procuro
Os amores que eu nunca encontrei
Benditas coisas que não sejam benditas


A vida é curta
Mas enquanto dura
Posso durante um minuto ou mais
Te beijar pra sempre o amor não mente, não
mente jamais
E desconhece do relógio o velho futuro
O tempo escorre num piscar de olhos
E dura muito além dos nossos sonhos mais puros
Bom é não saber o quanto a vida dura
Ou se estarei aqui na primavera futura
Posso brincar de eternidade agora
Sem culpa nenhuma"

Zélia Duncan

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

É isto um homem ?

"Mas que cada um reflita sobre o significado que se encerra mesmo em nossos pequenos hábitos de todos os dias, em todos esses objetos nossos, que até o mendigo mais humilde possui: um lenço, uma velha carta, a fotografia de um ser amado. Essas coisas fazem parte de nós,são algo como os órgãos de nosso corpo; em nosso mundo é inconcebível pensar em perdê-Ias, já que logo acharíamos outros objetos para substituir os velhos, outros que são nossos porque conservam e reavivam as nossas lembranças.
Imagine-se, agora, um homem privado não apenas dos seres
queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa,. tudo,
enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio,
reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade
e discernimento - pois quem perde tudo, muitas vezes perde
também a si mesmo; transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem qualquer sentimento  de afinidade humana, na melhor das hipóteses considerando puros critérios de conveniência". Primo Levi p. 25 É isto um homem

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Sementes




Olhos,
vale tê-los,
se, de quando em quando,
somos cegos
e o que vemos
não é o que olhamos
mas o que o olhar semeia no mais denso escuro.

Vida
vale vivê-la
se, de quando em quando,
morremos
e o que vivemos
não é o que a vida nos dá
nem o que dela colhemos
mas o que semeamos em pleno deserto.

Mia Couto

sábado, 12 de outubro de 2019

O elefante



Fabrico um elefante
De meus poucos recursos
Um tanto de madeira
Tirado a velhos moveis
Talvez lhe dê apoio
E o encho de algodão
De paina, de doçura
A cola vai fixar
Suas orelhas pensas
A tromba se enovela
E é a parte mais feliz
De sua arquitetura

Mas há também as presas
Dessa matéria pura
Que não sei figurar
Tão alva essa riqueza
A espojar-se nos circos
Sem perda ou corrupção
E há por fim os olhos
Onde se deposita
A parte do elefante
Mais fluida e permanente

Alheia a toda fraude
Eis meu pobre elefante
Pronto para sair
À procura de amigos
Num mundo enfastiado
Que já não crê nos bichos
E duvida das coisas
Ei-lo, massa imponente
E frágil, que se abana
E move lentamente
A pele costurada
Onde há flores de pano
E nuvens, alusões
A um mundo mais poético
Onde o amor reagrupa as formas naturais

Vai o meu elefante
Pela rua povoada
Mas não o querem ver
Nem mesmo para rir
Da cauda que ameaça
Deixá-lo ir sozinho
É todo graça, embora
As pernas não ajudem
E seu ventre balofo
Se arrisque a desabar
Ao mais leve empurrão
Mostra com elegância
Sua mínima vida
E não há na cidade
Alma que se disponha
A recolher em si
Desse corpo sensível
A fugitiva imagem
O passo desastrado
Mas faminto e tocante

Mas faminto de seres
E situações patéticas
De encontros ao luar
No mais profundo oceano
Sob a raiz das árvores
Ou no seio das conchas
De luzes que não cegam
E brilham através
Dos troncos mais espessos
Esse passo que vai
Sem esmagar as plantas
No campo de batalha
À procura de sítios
Segredos, episódios
Não contados em livro
De que apenas o vento
As folhas, a formiga
Reconhecem o talhe
Mas que os homens ignoram
Pois só ousam mostrar-se
Sob a paz das cortinas
À pálpebra cerrada

E já tarde da noite
Volta meu elefante
Mas volta fatigado
E as patas vacilantes
Se desmancham no pó
Ele não encontrou
O de que carecia
O de que carecemos
Eu e meu elefante
Em que amo disfarçar-me
Exausto de pesquisa
Caiu-lhe o vasto engenho
Como simples papel
A cola se dissolve
E todo seu conteúdo
De perdão, de carícia
De pluma, de algodão
Jorra sobre o tapete
Qual mito desmontado
Amanhã recomeçoFabrico um elefante
De meus poucos recursos
Um tanto de madeira
Tirado a velhos moveis
Talvez lhe dê apoio
E o encho de algodão
De paina, de doçura
A cola vai fixar
Suas orelhas pensas
A tromba se enovela
E é a parte mais feliz
De sua arquitetura

Mas há também as presas
Dessa matéria pura
Que não sei figurar
Tão alva essa riqueza
A espojar-se nos circos
Sem perda ou corrupção
E há por fim os olhos
Onde se deposita
A parte do elefante
Mais fluida e permanente

Alheia a toda fraude
Eis meu pobre elefante
Pronto para sair
À procura de amigos
Num mundo enfastiado
Que já não crê nos bichos
E duvida das coisas
Ei-lo, massa imponente
E frágil, que se abana
E move lentamente
A pele costurada
Onde há flores de pano
E nuvens, alusões
A um mundo mais poético
Onde o amor reagrupa as formas naturais

Vai o meu elefante
Pela rua povoada
Mas não o querem ver
Nem mesmo para rir
Da cauda que ameaça
Deixá-lo ir sozinho
É todo graça, embora
As pernas não ajudem
E seu ventre balofo
Se arrisque a desabar
Ao mais leve empurrão
Mostra com elegância
Sua mínima vida
E não há na cidade
Alma que se disponha
A recolher em si
Desse corpo sensível
A fugitiva imagem
O passo desastrado
Mas faminto e tocante

Mas faminto de seres
E situações patéticas
De encontros ao luar
No mais profundo oceano
Sob a raiz das árvores
Ou no seio das conchas
De luzes que não cegam
E brilham através
Dos troncos mais espessos
Esse passo que vai
Sem esmagar as plantas
No campo de batalha
À procura de sítios
Segredos, episódios
Não contados em livro
De que apenas o vento
As folhas, a formiga
Reconhecem o talhe
Mas que os homens ignoram
Pois só ousam mostrar-se
Sob a paz das cortinas
À pálpebra cerrada

E já tarde da noite
Volta meu elefante
Mas volta fatigado
E as patas vacilantes
Se desmancham no pó
Ele não encontrou
O de que carecia
O de que carecemos
Eu e meu elefante
Em que amo disfarçar-me
Exausto de pesquisa
Caiu-lhe o vasto engenho
Como simples papel
A cola se dissolve
E todo seu conteúdo
De perdão, de carícia
De pluma, de algodão
Jorra sobre o tapete
Qual mito desmontado
Amanhã recomeço

Drummond 

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

O dia em que Selma sonhou com um ocapi





“Quando fixamos o olhar por um bom tempo em alguma coisa bem iluminada e depois fechamos os olhos, essa imagem persiste, estática, em nossa mente. O que na realidade era claro fica escuro e o que na realidade era escuro fica claro. Quando, por exemplo, observamos um homem descer a rua e se virar, de tempos em tempos, para acenar uma última vez, uma última vez mesmo, uma derradeira última vez e depois fechamos os olhos, enxergamos na mente a imagem congelada da derradeira ultima vez. O sorriso fica congelado e os cabelos escuros ficam claros, e os olhos claros, muito escuros.
Quando aquilo que ficamos olhando durante muito tempo era importante, algo, segundo Selma, capaz de virar de ponta-cabeça todos os aspectos da vida num único movimento,  essa imagem sempre retornará à nossa mente. Ela retorna de repente até décadas mais tarde, não importando o que tínhamos acabado de mirar antes de fecharmos os olhos.  A imagem de um homem que acena uma derradeira última vez aparece de repente quando, por exemplo, um bichinho nos cai nos nossos olhos enquanto estamos limpando a calha de chuva. Aparece quando queremos descansar os olhos por um instante porque ficamos estudando por muito tempo a incompreensível planilha dos gastos extras do condomínio. Quando estamos sentados na cama de um filho, à noite, contanto uma história de ninar e nos esquecemos do nome da princesa ou do seu final feliz porque já estamos muito cansados. Quando fechamos os olhos ao beijar alguém. Quando estamos deitados no chão de terra, numa mesa de exames clínicos, numa cama alheia ou mesmo na nossa cama. Quando fechamos os olhos porque estamos carregando algo muito pesado. Quando passamos o dia inteiro caminhando e paramos apenas para amarrar os cadarços e só então, com a cabeça para baixo, percebemos que não descansamos um minuto sequer naquele dia. Aparece quando alguém diz “feche os olhos” para nos preparar uma surpresa. Quando nos encostamos na parede de um provador porque nenhuma das calças escolhidas serviu. Quando fechamos os olhos um pouco antes de finalmente revelarmos algo importante, antes de dizermos, por exemplo, “eu te amo” ou “mas eu não”. Quando, à noite, fritamos na manteiga rodelas de batatas cozidas. Quando fechamos os olhos porque diante da porta está alguém que não queremos de modo nenhum convidar para entrar. Quando fechamos os olhos porque uma preocupação muito grande foi tirada de nossas costas. Quando reencontramos alguém ou alguma coisa, uma carta, um sentimento de segurança, um brinco, um cachorro perdido, uma voz ou uma criança que estava escondida. Essa imagem sempre retorna de repente, retorna como se fosse um descanso de tela da vida – muitas vezes, quando menos esperamos”.
Mariana Leky

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Drummond 

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Lições




Não aprendi a colher a flor

sem esfacelar as pétalas.

Falta-me o dedo menino

de quem costura desfiladeiros.


Criança, eu sabia

suspender o tempo,

soterrar abismos

e nomear as estrelas.

Cresci,

perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trêmula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.

Lembrança Alada







Em alguma vida fui ave.

Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.

Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes
com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.

Guardo a pluma
que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.

Em alguma ave fui vida.
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.


sábado, 4 de maio de 2019

Foto: Dorothea Lange


E uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.
Clarice Lispector 




terça-feira, 16 de abril de 2019


Lídia
Uma alma em(canto)



Eu assim... Vejo-te de tão perto, longe.
Sei que parte cada dia um pouco, parte tão lindamente, sorrindo pra vida. Há anos te olho, de tão longe, perto, de tão perto, longe.  Tuas janelas verdes, vivas, abertas em constante ventania. Teus olhos nunca choram, agradecem a vida... Está tudo certo. Eu, de tão perto , de tantos erros não entendo teu certo, mas tu sorri. Sorri com o som da vida, tua barriga ri, gargalha a cada mínima faísca que te ascende, acende, ascende. Vejo teu corpo fragilizar e tua alma voar, tua transformação pássaro. A gente ri como duas velhas amigas de escola, tu com teus quase um século me chama de jovem, eu com quase meio século queria ter a sabedoria da tua poesia. Saímos e tu para em cada flor, eu reclamo, preocupa-me o entorno, mas sorrio por dentro com teus passos lentos e tua alma veloz. Sabe olhar o que importa, nunca perde uma piada, uma foto, um assunto ou gíria nova. Cuido de ti querendo ter o dom de te eternizar, pois tu já te eternizaste em mim. A gente combina de vir avisar a outra se existe outro lado, outra vida, outra forma de existir. Tu tens medo de fantasma, eu prometo que não virei num lençol branco, mas nos teus sonhos. Tu me diz que não vai com a morte, que terão que te levar a força, a mando dos filhos. Eu rio triste, a gente sabe que a morte não pede licença, mas digo que tu és eterna. A gente sabe e não sabe, no fundo todos cremos um pouco no eterno. Contigo eu aprendi um pouco mais de MPB, da Clara Nunes, da Ivone Lara. Comigo tu começou a adorar Felipe Catto, Jean Melgar, Ilse Lamper, rodas de samba. Compartilhamos tantas músicas olhando o gato amanhecer na janela do lado,  as caturritas migrarem. Já me encantei tantas vezes ao te ouvir cantar, já cantou tantas musicas que te pedi, mesmo não querendo, sempre canta. Te coloquei mil apelidos, tu ri de todos , tu nunca perde oportunidade do riso, tu nunca perde.  Já te vi doente e quis estar longe porque conheço demais teus sinais, a mudança dos teus olhos, mas penso que a única coisa que posso te dar é a presença. Eu fico, mas eu que não sei rezar me pego rezando por ti. Descobri que o ser humano é sempre criança, só depende de ter um lugar pra brincar. Não vemos nossa pele enrugar, nossas pernas falharem, nossa coluna curvar, nossas mãos perdendo a força e nossa Memória sucumbir.  A finitude é irrealizável, assim que tem que ser.
Vejo o tempo te surpreender diante do espelho, não crê que a vida foi tao rápida, pois a menina em ti ainda dança, ainda reencontra teus irmãos num infância cheia de vida e teu pai com a maquina fotográfica em passeios familiares. Pergunto dos teus sonhos, dos teus medos, dos teus gostos. Já te vi dançando na sala e eu gargalhava com tua beleza de ser criança de um século. Penso que nunca crescemos e buscamos a leveza da dança despretensiosa, do erro certo, da felicidade simples. Nos já demos comida aos pássaros de manha cedo, fomos advertidas pelo condomínio, não se pode alimentar os pássaros para não “sujar”o parapeito vizinho. Eu detestei a vizinha por isso, tu só disse que ela era uma infeliz e lamentou os pássaros não chegarem mais na janela. Eu sigo detestando a vizinha, talvez um dia consiga apreender tua sabedoria, talvez...
 Tu oras no teu silêncio, te ancora na tua fé. Eu creio em ti, senhora da vida, o verdadeiro milagre. Repete sempre que não se arrepende de nada sem ter noção da grandeza que é isso. Viveria tua vida tal qual foi vivida, és uma nietzschiana sem saber que o és. Tua sabedoria de não se saber sábia. 
Eu assim vejo a vida acontecendo em ti todos os dias. É tão longe te imaginar longe, então pego cada pedaço de ti e vou costurando em mim para que nunca partas, para que nunca me deixe sem ti. Cada passo teu me faz rever a vida, me faz pegar teus pés a tentar um novo caminho, me faz te querer reagindo contra o tempo. Eu sei, o tempo não negocia, mas eu humanamente te quero aqui, um pouco mais no meu tempo, sendo tu, me ensinando a ser Lídia, a ser esta bailarina da vida que apenas sorri porque sabe simplesmente a complexidade do existir. 

Amor, Lídia...


sábado, 23 de fevereiro de 2019

Lamento Sertanejo



Lamento Sertanejo
Dominguinhos


Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga e do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado

Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão, boiada caminhando a esmo

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Congresso Nacional do Medo



Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe 
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas

Carlos Drummond de Andrade