"Olhe para todos ao seu redor e
veja o que temos feito de nós. Não temos amado acima de todas as
coisas. Não temos aceito o que não entendemos porque não queremos passar
por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não termos um ao
outro. Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada. Não nos
temos entregues a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga
e nós a tememos. temos evitado cair de joelhosn diante do primeiro de
nós que por amor diga: tens medo. Temos procurado nos salvar, mas sem
usar a palavra salvação para não envergonharmos de ser inocentes. Não
temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura
de ódio, de ciúmes e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em
segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Temos disfarçado
com falso amor nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é
angústia disfarçada. Temos disfarçado com pequeno medo o grande medo
maior e por isso nunca falamos o que realmente importa. Falar no que
realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a
sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não
temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos, e para que no
fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não
ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público o que
não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a
nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo
isso consideramos a vitória nossa de cada dia."
Clarice Lispector
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