Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação
humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida. Sei que
precisarei tomar cuidado para não usar superficialmente uma nova
terceira perna que em mim renasce fácil como capim, e a essa perna
protetora chamar de uma verdade Mas é que também não sei que forma dar
ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E - e se a
realidade é mesmo que nada existiu?! Quem sabe nada me aconteceu? Só
posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo -
que sei do resto? O resto não existiu. Quem sabe nada existiu! Quem
sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E que minha luta
contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe
uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à
substância amorfa - a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos,
mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas
fomes - então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a
vida humanizada.
A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida.
A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida.
Clarice Lispector - A Paixão segundo G.H
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